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A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura
Novo planejamento
territorial à vista

Introdução

Os grandes projetos de infra-estrutura têm o poder de consolidar determinadas trajetórias de desenvolvimento. Por isso, todos temos o direito de aprová-los, de condicioná-los ou de vetá-los. Complexos energéticos e viários servem para densificar ou para simplificar territórios. Qual é a escolha, quem escolhe? Energia, água, transportes e telecomunicações para que, para quem e de que forma deveriam ser as questões balizadoras do planejamento da infra-estrutura no país? No entanto, os critérios determinantes têm sido taxas de retorno compensadoras e o uso competitivo dos equipamentos. O resultado: infra-estrutura como negócio em prol dos negócios, estruturando cadeias de comércio intrafirma no lugar de mercados internos. Na ausência de políticas econômicas e setoriais ativas, tem prevalecido a lógica da multiplicação de oportunidades de negócio, da oferta de plataformas de produção de commodities de baixo valor agregado. Grandes projetos de infra-estrutura para reestruturar o território em marcos privados e transnacionais, desfigurando meio ambiente, economias locais e saberes tradicionais. O agendamento e priorização por parte do Governo federal, estaduais, Instituições Financeiras Internacionais e investidores privados de grandes obras de conexão viária, produção e transmissão hidroelétrica e gasífera nos Estados do Acre, Rondônia e porção ocidental do Amazonas, não poderia ser feito sem que antes se explicitasse e se justificasse o padrão de desenvolvimento a ser potencializado, sem que se detalhassem os desdobramentos regionais e locais dos empreendimentos previstos, sem que se colocassem na mesa as opções em jogo. Inicialmente estão previstos para a região, em estágios diferenciados de planejamento, licenciamento ou operação, o Gasoduto Urucu-Porto Velho, o asfaltamento da Br 319 (Porto Velho – Manaus), as Hidroelétricas de Santo Antonio e A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. Jirau no Rio Madeira, a hidrovia industrial no mesmo rio e a Rodovia Interoceânica entre Rio Branco e os portos peruanos do Pacífico. Esse conjunto de obras teria o poder de transformar drástica e definitivamente o perfil sócio-econômico e ambiental da região. Tendo em vista a magnitude dos recursos naturais disponíveis, as potencialidades produtivas mobilizáveis e seus efeitos na consolidação do perfil do desenvolvimento do país e conseqüentemente do processo de integração regional sul-americana, o Estado brasileiro não pode renunciar à sua condição de agente estruturador desse espaço agregado, de importância estratégica. A chamada “saída para o Pacífico” não pode ser um mero corredor de exportações de matérias-primas, e sim o resultado do fortalecimento das vocações econômicas próprias à região. A questão não é se devemos ou não nos inserir na economia do Pacífico, mas como nos inserimos, com que autonomia e com que perfil de sociedade, para depois dizermos o que podemos e devemos exportar. A expansão das áreas de produção sojeira e de pecuária se intensificou justamente no período em que diminuía a disponibilidade de recursos público para investimentos em projetos federais, nos anos 80. O crescimento regional induzido predominantemente pelo setor privado, dedicado à produção primária ou básica e voltado para o mercado externo, aprofundou os desníveis de renda, impôs novas relações na hierarquia urbana, remodelou os fluxos migratórios e produziu um descompasso ainda maior entre os núcleos de dinamismo econômico da Amazônia Ocidental. O resultado ao longo dessas duas décadas foi o aprofundamento da desarticulação territorial acompanhado de um processo de precária institucionalização democrática que favoreceram a oligarquização política e a disseminação do crime organizado. A experiência concentradora e oligopolizadora dos grandes projetos na Amazônia tem comprovado que o desenvolvimento regional depende menos da capacidade de atração de empreendimentos vinculados a pólos dinâmicos externos e mais da capacidade da própria região de alterar suas estruturas produtivas. Os grandes projetos de infra-estrutura -a depender do perfil e composição de seu financiamento, da montagem das cadeias produtivas que se acoplam aos empreendimentos e da especialização econômica que favorecerem- só farão aprofundar as gritantes assimetrias sociais e econômicas já presentes na região. Em primeiro lugar é a feição da Amazônia que está em jogo. Sem projeto nacional para impor contornos ao poder dos mercados, sem prioridades socioambientais e intergeneracionais claramente identificadas, a região ingressará desguarnecida no novo estágio de internacionalização que se avizinha. A região vai servir de trampolim para um “salto elétrico”, ao dispor do setor privado, ainda que sob impulso da Eletrobrás. O Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica (2006-2015) já definiu que a via prioritária para a expansão de geração é o aproveitamento máximo do potencial hidrelétrico da Bacia Amazônica, a começar pelo rio Madeira. A construção de Santo Antonio (3,15 mil MW) e Jirau (3,3 mil MW) consolidaria o perfil de um modelo voltado para a disponibilização de “excedentes” para atrair segmentos A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. industriais eletro-intensivo, como os da cadeia do alumínio. Uma reedição da desastrosa política de incentivos para a ocupação da Amazônia, incentivos agora de ordem infra-estrutural com impactos muito menos reversíveis. Nas décadas de 1970 e 1980, o regime militar procurou incorporar a Amazônia à estrutura produtiva do centro-sul e, por derivação, aos circuitos produtivos mundiais por meio de obras viárias e de incentivos a grandes projetos minerais e agropecuários. Nas últimas décadas, com os governos FHC e Lula, programas de interconexão de infra-estrutura (Avança Brasil, IIRSA e PAC) pretenderam vincular diretamente a região à dinâmica desses circuitos por meio de um processo de “integração regional”. Essa integração não passa de um novo ciclo de internacionalização do continente gerido de forma conjunta pelos Estados nacionais sul-americanos, em processo de desmonte, sob regência do Fundo Monetário Internacional (FMI) e bancos multilaterais. Esse planejamento territorial de caráter privado e transnacional ignora ou menospreza a fragilidade, a diversidade e a complexidade da região amazônica, tanto em termos sócio-culturais e como ambientais. Contando com cerca de 52% do território nacional, a Amazônia não é simplesmente espaço de expansão, mas espaço de projeção em que o Brasil pode ser confirmado ou desfeito. Em um contexto de interconexão dos mercados e de harmonização de processos políticos decisórios em escala global, os “recursos naturais” da Amazônia passam a ser vistos como estoques, mercados de commodities ou de futuros, a serem regulados pelos conglomerados transnacionais. O resultado dessas políticas instrumentalizadoras e fragmentadoras foi uma sucessão de enclaves em rotação, um enorme território a disposição dos investidores privados e de suas encomendas. Projetos e programas patrocinados pelo Banco Mundial para a região amazônica, tais como o PP-G7 e ALFA, revelam a tentativa de “racionalizar” esse processo de incorporação, de forma que a espoliação seja sustentável e duradoura. O fato de as políticas vigentes, com foco e prioridade na região amazônica, estarem subordinadas a instituições financeiras multilaterais revela um perigoso vazio de projeto nacional e regional. A Amazônia como construção nativa, diversa e popular está sendo inviabilizada pela Amazônia das redes verticais, com centros decisórios externos que desprezam encadeamentos internos e compromissos com a população. A infra-estrutura projetada para a região não pode condená-la a especializações econômicas estáticas e sim promover sua capacidade para responder aos desafios externos com criatividade, com fundamentos tecnológicos próprios, multiplicando oportunidades de aprendizagem social e de amadurecimento institucional. 1. Nova ordem territorial: privada e transnacional
A decisão sobre a realização das Usinas do Madeira vai muito além do chamado planejamento energético nacional. O abastecimento energético é apenas a forma de legitimar a ignição de um ciclo de grandes projetos de infra-estrutura que submete a A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. Amazônia a uma nova ordem territorial, vinculada às instituições financeiras internacionais e aos setores primário-exportadores. O projeto das Usinas no Rio Madeira não tem respaldo de estudos de Bacia, que deveriam envolver, obrigatoriamente, a Bolívia e o Peru. O Governo omite que essas usinas fazem parte de um projeto de um corredor hidroviário e rodoviário que, em forma de cunha, interconecta a Amazônia Ocidental aos portos do Pacífico. Trata-se do “Eixo Peru-Brasil-Bolívia”, da Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul- Americana (IIRSA), concebida pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) como um pacote de empreendimentos viários e energéticos e de aparatos (des) regulatórios, para estabelecer uma nova forma de gestão do território sul-americano, e da Amazônia em particular. O BID também se refere à região como um “celeiro de projetos de infra-estrutura paralisados”. Não casualmente a IIRSA dedica três de seus 10 “eixos de integração” ao objetivo de abrir caminho para os fluxos econômicos globais que querem atravessar a Amazônia. O início dessa história é agosto de 2000, em Brasília, em um encontro de cúpula dos 12 países sul-americanos convocado pelo BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento, pela CAF – Corporação Andina de Fomento, e pelo FONPLATA - Fundo de Desenvolvimento da Bacia do Prata. Essas Instituições Financeiras Multilaterais, com maioria de capital norte-americano, resolveram priorizar programas de expansão/interconexão de infra-estrutura dedicados a aumentar a eficiência dos fluxos internacionais de comércio, ou seja, das corporações transnacionais. Os serviços de infra-estrutura (energia, telecomunicações e transportes) servem para facilitar a expansão das redes econômicas transnacionais. A estratégias de deslocalização dos capitais e de formação de cadeias globais de suprimentos na periferia são definidas cada vez mais pelo perfil e amplitude da infra-estrutura oferecida pelos países periféricos que disputam a condição de destinatários preferenciais de investimentos estrangeiros. A IIRSA iniciativa recorta o continente sul-americano em dez faixas prioritárias para investimentos em infra-estrutura tendo em vista o potencial exportador de cada uma delas. Estas faixas multinacionais são chamadas de “eixos de integração. Um desses eixos, chamado de “Peru-Bolívia-Brasil”, pretende converter a região do sudoeste da Amazônia e a bacia do rio Madeira em um escoadouro de energia para o centro sul e de matérias-primas e de recursos naturais para o Oceano Pacífico. Esse eixo apresenta os seguintes grupos de projeto: A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. a) dois grupos de interligação rodoviária, incluindo a Rodovia Interoceânica que sai de Assis Brasil no Acre chegando até Juliaca e demais portos do sul do Peru; b) um grupo de interconexão hidroviária e energética, o Complexo Madeira, composto por 4 hidroelétricas, Santo Antonio, Jirau, Ribeirão e Cachuela Esperanza, uma hidrovia rio acima e uma linha de transmissão. Depois de uma década de desmonte neoliberal, nossos países estariam preparados para “reformas mais profundas” envolvendo marcos regulatórios privatizantes e grandes obras de infra-estrutura, oferecendo aos mercados internacionais livre disposição sobre o território, especialmente sobre seus recursos naturais. A IIRSA nada mais é do que um processo de enquadramento de países, meios e povos ao cronograma dos grandes investidores privados. Mais que um conjunto completo de obras de infra-estrutura, o que essa iniciativa oferece são paradigmas, metodologias e medidas de regulamentação setorial transnacional. O projeto Complexo Madeira, seguindo a lógica da IIRSA, não se limita a criar infra-estrutura física. Junto com as obras vêm as reformas nos marcos regulatórios que terceirizam o controle sobre o território. É o sacrifício de políticas públicas e dos direitos da população se tornando condição para a viabilização econômico-financeira dos negócios das grandes empresas na região. O objetivo do projeto Complexo Madeira é muito simples: o aproveitamento total do maior afluente do Amazonas seja para fins hidroelétricos seja para fins hidroviários. O Complexo Madeira só se realiza, portanto, como um não-Rio Madeira, com a negação igualmente total de todas suas formas de vida e de cultura que, no rio e por causa do rio, proliferaram e interagiram. Uma grande artéria da bacia amazônica está sendo pinçada pelos grandes grupos econômicos nacionais e transnacionais. Esse impressionante sistema de bombeamento de água, sedimentos e vida - que é o rio Madeira correndo para o Amazonas - corre o risco de ser interrompido caso se construam as duas usinas que dão início ao Projeto Complexo Madeira, composto por mais duas hidroelétricas e uma hidrovia em direção ao Oceano Pacífico. O licenciamento “por partes” do Complexo deixa de fora até mesmo a Linha de Transmissão e a hidrovia, o que revela a intenção do Governo brasileiro de ocultar os efeitos conjuntos e transfronteiriços do projeto. Na prática isso quer dizer que se está transferindo previamente poder regulamentador, sobre uma região estratégica para a articulação e interligação do continente, para conglomerados privados e A exigência de flexibilização das regulamentações ambientais e o requerimento de que as licenças prévias se subordinem ao timing dos investidores privados revelam a falta que faz o planejamento público do setor de infra-estrutura. A esquizofrênica competitividade ditada de fora para dentro só consegue ver o país profundo como entrave, como custo. “Gargalo” é o problema segundo a ótica dos que se dedicam a escoar riquezas. Se formos reduzir o custo-país aumentando o passivo social e ambiental, historicamente acumulado, seremos tão somente o país que baratearmos A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista.
2. PPI/PAC: privatização e liberalização em outros níveis
O Projeto das Usinas no Madeira e o de transposição do São Francisco são peças-chave do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo federal. Programa que expressa o máximo que um Estado-nação desmontado ao longo de duas décadas de políticas neoliberais pode querer em termos de desenvolvimento: o crescimento do que aí está, da desindustrialização ou da especialização regressiva das cadeias produtivas do país. A recuperação do papel intervencionista do Estado está se dando a favor dos grandes conglomerados. Basta ver quais setores se beneficiam diretamente com as obras listadas no PAC: o agronegócio, o setor eletrointensivo e as grandes cadeias de serviços de infra-estrutura. O PAC reproduz a lógica da IIRSA no plano interno, uma demonstração de subordinação ativa da economia nacional aos mercados internacionais. Que soberania resta a um país convertido em uma incubadora de plataformas de exportação? A trajetória do BNDES é exemplar nesse sentido: evoluiu de financiador das privatizações a parceiro estratégico dos setores privatizados e transnacionalizados com atuação no país e na América do Sul. No caso do Madeira, o BNDES, antes mesmo da emissão da Licença Prévia, anunciou a disponibilidade de financiamento de cerca de 75% do empreendimento, e depois da emissão da Licença já se potencial sócio do consórcio vencedor do leilão A seletividade na destinação de recursos e subsídios está sendo orientada pelo padrão pós-FMI: depois do estrangulamento geral da economia nacional, a oxigenação condicional e seletiva. Recupera-se capacidade de investimento para ampliar a escala das economias de enclave, reais e potenciais. O acréscimo de “produtividade” no Brasil significa redução de custos operacionais nas cadeias produtivas transnacionais. A premissa para a deslocalizaçao dos negócios não é a criação de novas habilidades e o intercambio justo delas, mas o rebaixamento dos custos e regulamentações. Os setores de infra-estrutura financiados e planejados sob a ótica da nação reversa, funcionam como plataformas de oligopolização dos territórios. A oferta é feita nos termos de uma chantagem: o desenvolvimento possível depende da qualidade da interconexão do país/região com os mercados globais, requerendo uma infra-estrutura especializada, com marcos de gestão “favoráveis” aos investimentos (market friendly) que vierem em sua esteira. Os Projetos Pilotos de Investimentos (PPIs), uma herança permanente do último acordo do país com o FMI, indicam a forma adequada de consolidar a participação privada em infra-estrutura propiciando “competitividade” e garantia de retorno financeiro, sem prejuízo do ajuste fiscal. Os PPI são matrizes lógicas dos grandes projetos de infra-estrutura do PAC e constituem uma forma ativa de indução da transnacionalização e da fragmentação da nação. A gestão exemplar proposta para o setor de infra-estrutura requer enquadramento dos “riscos regulatórios” e o “monitoramento intensivo” da execução de projetos. O A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. GE-PPI, Grupo Executivo composto pela Casa Civil e pelo Ministério do Planejamento, “vai permitir o monitoramento intensivo das ações integrantes do PPI identificando o estágio atual de execução, eventuais restrições e as providências necessárias”. Os PPIs, estão no centro da lógica dos projetos do PAC, estabelecendo uma folga fiscal para investimentos em infra-estrutura sob a condição de serem voltados para exportação e para o retorno financeiro. Esses projetos, e o projeto do Complexo Madeira, em particular, são “negócios da China” para atrair investimentos estrangeiros. 3. Licenciamento: controle social ou controle privado?
Como se sabe, pela sistemática de licenciamento ambiental, cabe aos
empreendedores o ônus da prova. É somente do preenchimento estrito dos requisitos sociais e ambientais que nasce o direito à licença. A Licença Prévia autoriza a localização, ou seja a viabilidade de que seja ali, e também a concepção e lay out das obras, ou seja a viabilidade do aproveitamento. O processo de licenciamento ambiental prévio serve para que se identifiquem os riscos capazes de interferir no meio ambiente e na vida das populações do entorno, e demonstrar científica e tecnicamente que os eventuais benefícios das obras superam suas seqüelas sociais e ambientais. A Licença-Prévia deveria representar um atestado de viabilidade, atestado do que valeria a pena em função de todos e do meio ambiente. A viabilidade de uma hidroelétrica procura equacionar a compatibilidade entre o aproveitamento pretendido, os direitos da população e o meio ambiente. Essa compatibilização precisa, no entanto, ser confirmada em Audiências Públicas. As Audiências representam o único momento de escrutínio social de projetos de construção com grande impacto socioambiental. Elas gabaritam ou não os estudos ambientais, apresentados de forma resumida no Relatório de Impacto Ambiental. As quatro audiências convocadas para avaliação do estudos do Projeto das usinas no Rio Madeira(Porto Velho, Jacy-Paraná, Mutum-Paraná e Abunã) em primeiro lugar, foram insuficientes em sua abrangência geográfica tendo em vista a verdadeira área potencial de impacto. Em segundo, deu-se pouca publicidade (e/ou não foi facilitado o acesso) ao Relatório de Impacto Ambiental que deveria estar disponível previamente ao público na sede do Município e nos respectivos distritos. Em terceiro, os dados, diagnósticos e previsões apresentados no EIA-RIMA eram de tal forma precários em suas conclusões, que essas Audiências já estavam prejudicadas por falta de fidedignidade e confiabilidade dos estudos. Não se pode fazer uma avaliação pública, ponderada e sensata, com base em dados e projeções sob contestação técnica. O que se verificou nessas Audiências foi um esforço propagandístico recorrente do Consórcio Furnas/Odebrecht em apresentar somente os benefícios do empreendimento, sem que os danos potenciais fossem assumidos claramente, ainda que muitas falas do público exigissem esse reconhecimento e detalhamento. É preciso frisar que em 21 de março de 2007 um parecer técnico do IBAMA defendeu a inviabilidade do projeto por insuficiência de informações sobre os reais riscos e por falta de capacidade de resguardar os direitos da população na área de influência. A negação desse parecer custou uma intervenção branca no órgão e uma série de A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. despachos que reabilitaram os estudos, setorizando os impactos. O IBAMA nesse caso foi obrigado a engulir seus próprios critérios e exigências para transformar aquilo que deveria ser prévio e condicionante em concessão a posteriori. Isso é perverter a lógica do licenciamento ambiental como ferramenta de planejamento e como peça de compromisso social. O licenciamento prévio das Usinas no rio Madeira representa um novo paradigma para os demais processos que virão em sua esteira. Foram alterados os patamares de suficiência de comprovações técnicas e de compromissos públicos requeridos até agora. Esse intento de desconstrução fica manifesto na: 1. Minimização das áreas de impacto direto e indireto com a exclusão do território Bolívia e das áreas a jusante; 2. Anulação da necessidade prévia dos estudos de bacia; 3. Segmentação do licenciamento do Projeto do Complexo Madeira de forma que as duas Usinas tornem, em um momento seguinte, a hidrovia e a linha de transmissão 4. Adoção de metodologias e critérios de certificação que minimizam e mascaram os danos; 5. Definição arbitrária do Consórcio Furnas/Odebrecht dos próprios critérios de suficiência ou de insuficiência de estudos, 6. Aprovação da Licença Prévia com condicionantes que procuram substituir o vazio de informação e de diagnóstico com monitoramento, o que significa que os empreendedores terão autonomia para definir as próprios parâmetros da instalação e operação. As condicionantes anexadas à Licença Prévia transferem salvaguardas e garantias prévias para a fase de instalação, o que caracteriza irregularidade e casuísmo no processo de licenciamento.
O licenciamento de um Projeto com tantas omissões e renúncias de regulamentação
pública e de controle social procura consolidar o desmonte do processo de
licenciamento ambiental no país.
4. Autorização para o vale-tudo dos grandes negócios
Os estudos ambientais do Projeto Madeira inovam para pior à medida que
apresentam comprovações técnicas de viabilidade com grau de suficiência condizente com os estudos disponíveis. Como não existem informações acumuladas sobre a Bacia do Madeira por falta de estudos aprofundados e integrados, a aprovação técnica do Projeto se deu com base em estimativas positivas de consultores contratados pelos próprios interessados. Trataremos a seguir das principais lacunas A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. do projeto e que foram objeto de sucessivos pedidos de complementação sem que fossem identificados minimamente os riscos envolvidos.
4.1 Sedimentos
O Parecer 014/2007 do IBAMA apresenta os seguintes problemas relativos ao estudos hidrosedimentológicos no rio Madeira: - “O assoreamento dos reservatórios está diretamente relacionado com o comportamento das áreas a montante não diagnosticadas no EIA”. - “As áreas de abrangência da inundação, com a formação dos reservatórios, não levaram em consideração os efeitos de remanso”. - “Agravando os efeitos de remanso, o assoreamento causará sobrelevações nos níveis d’água, o que também não foi considerado na identificação dos impactos”. - “Não existe qualquer confiabilidade de que a totalidade dos sedimentos será conduzida através do reservatório e de que não ocorrerão variações significativas de vazões sólidas, em relação às condições naturais. - “ A operação do vertedouros poderá agravar a alteração da dinâmica sedimentológica do rio madeira, com grande potencial de causar impactos de todas as magnitudes a jusante, os quais não foram identificados” (grifos nossos). informação técnica 017/2007, que sucede o Parecer, requerendo complementações requereu além da contratação de especialista com notório saber, a realização de um painel desse especialista com pares da área, a fim de que se resolvam as lacunas apontadas. A contratação foi feita na figura do consultor Sultan Alan e um painel de especialistas foi realizado resultando na nota técnica “Sedimentos, Modelos e Níveis d’água”, assinada por José G. Tundisi, Newton O. Carvalho, e Sultan Alam. Como não existem informações acumuladas sobre a Bacia do Madeira por falta de estudos integrados, a aprovação técnica do Projeto se deu com base em estimativas positivas escoradas em estudos disponíveis, considerados de antemão suficientes pelos referidos consultores. Na nota técnica conjunta os consultores José G. Tundisi, Newton O. Carvalho, e Sultan Alam, advogam a não necessidade de levantamentos de dados ou estudos de diagnóstico fora do território nacional, isso porque a estação fluviométrica de Abunâ permitiria avaliar a carga de sedimentos de toda a bacia do Madeira. Assim concluem que : “Não é imprescindível um conhecimento detalhado da origem dos sedimentos do Rio Madeira nessa fase de licenciamento prévio.” Os consultores procuram eliminar a necessidade de estudos de bacia, no que toca à dinâmica dos sedimentos, apenas para a fase prévia de licenciamento. Então somente no momento de instalação e operação das Usinas é que esses estudos seriam imprescindíveis? O enfoque destravador dos consultores contratados coloca a A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. segurança do empreendimento acima da segurança da população e do meio ambiente. Mais a frente, nessa mesma nota a equipe de consultores considera superestimadas as previsões que constam no EIA sobre o provável assoreamento acima dos reservatórios. Segundo eles a precisão do resultado dependeria “de dados geométricos e da granulometria do leito em cada seção transversal e da caracterização de todos os controles hidráulicos existentes entre Abunã e Santo Antonio. A aferição do modelo depende desses dados, alguns com variação temporal que não existem no momento, pois sua obtenção exige uma série de observações e medições.” (grifos nossos). Oras, sabemos que a com a operação das usinas vai se dar uma nova variação, um novo volume d’água, entre os períodos de cheia e de vazante, acima e abaixo das represas. Falar que as condições naturais serão praticamente as mesmas depois das usinas, sem prever precisamente as variações máximas e mínimas do nível d’água em uma escala temporal, é apenas uma forma de tangenciar o problema. Um maior nível de alagamento que faça necessário para estabilizar a potência hidráulica das usinas significará necessariamente um maior nível de deposição de sedimentos que o atual. Esse índice precisa ser assumido, medido e avaliado para saber se há mitigação/solução possível. Sobre a curva de Brune, que serve para medir níveis aproximados de assoreamento nos reservatórios, o consultor Sultan Alan considera super-estimada a previsão de retenção de pelo menos 20% de sedimentos. A previsão, segundo o consultor, somente se justifica “do ponto de vista da segurança da engenharia de estruturas e de equipamentos, não é contudo adequada na ótica da análise ambiental”. O consultor questiona a precisão dos resultados pois para se chegar a dados exatos seria preciso caracterizar os controles hidráulicos, o que só seria possível depois da sua instalação, ou seja é um tiro no escuro, e na segurança da população e do meio ambiente.A nota técnica dos especialistas contratados diz quanto ao prognóstico de sedimentação incluído no EIA que “ o modelo atual não tem validação para chegar a este resultado de forma confiável” Nem vice-versa portanto. Ninguém pode dizer o contrário, que não haverá sedimentação.Ou seja, a incerteza perdura. Os especialistas na nota conjunta reconhecem que os dados não existem “no momento”, mas, quando chegar a hora da instalação, poderão ser coletados e “o modelo poderá ser calibrado para dar uma resposta mais precisa e válida”. Comprova-se que o Projeto em si mesmo é um grande piloto, e o rio e a população circundante, suas cobaias.
4.2 Ictiofauna e pesca
O próprio EIA em seu Tomo C (página II-147)admite que “ainda que medidas mitigatórias sejam apresentadas, como por exemplo a construção de um sistema de transposição de peixes, tem-se dúvida da efetividade do mesmo devido a diversidade de comportamentos, tamanhos e características gerais das espécies de peixes afetadas pelos barramentos (.) Portanto a interrupção das rotas migratórias das A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. espécies reofílicas (de águas correntes) ocorrentes neste trecho do rio Madeira poderá levar à diminuição dos estoques de espécies de grande interesse comercial não somente na região como em toda bacia Amazônica.”(grifo e parêntese nossos) O parecer 014/2007 que avaliou o EIA do Madeira, dedica 9 itens ao tema a partir da pág.196 do mesmo: - 3.32: alteração na composição de espécies ictíicas devido a mudanças na dinâmica da água pela formação dos reservatórios. - 3.33:introdução de espécies ictíicas alotóctones(de habitats disntintos) provocada pela eliminação de barreiras físicas naturais. - 3.34:interrupção de rotas migratórias de peixes em conseqüência de barramentos. - 3.35:interferência na rota de deriva de ovos, larvas e juvenis de peixes - 3.36:perda de biodiversidade de peixes. - 3.37:perda de área de desova e de crescimento da ictiofauna. - 3.38:modificação da pesca nos reservatórios devido a alteração nos recursos - 3.40: concentração dos cardumes a jusante dos barramentos. - 3.42: alteração na renda dos pescadores. Estes eventos, “na eventualidade da formação dos reservatórios”, como expõe o Parecer, “envolvem a modificação nos gradientes naturais de velocidade da água, modificações na profundidade, diminuição dos teores de oxigênio dissolvido, manutenção de cotas de operação um pouco acima da cota de inundação natural com o conseqüente afogamento de cachoeiras no rio Madeira, além da uniformização dos habitats. Convém lembrar que essas alterações serão de caráter permanente e não mitigáveis”.(grifo nosso) É preciso avaliar a própria adequação do STP(sistema de transposição de peixes) para um rio como o Madeira. Como o STP é unidirecional(jusante-montante) a descida seria pelas próprias turbinas ou pelos vertedouros (abertos só em época de cheia). O possível aumento da mortandade que for decorrente de um fluxo em tais condições , precisa ser avaliado. Além disso, a menor vazão do rio também comprometeria o ciclo reprodutivo dos peixes. A negligência de informações a respeito dos efeitos dos eventuais barramentos sobre a descida dos peixes expressa escassa percepção das variações espaço-temporais na cadeia alimentar da ictiofauna regional. A conveniente suposição de “retenção zero” de sedimentos também está sendo aplicada à deriva de ovos, larvas e juvenis. Mas a suposição só vale para os meses da cheia, com abertura dos vertedouros, considerando-se ser este o pico reprodutivo de espécies migradoras como a dourada. Mesmo que haja deriva completa nesses meses e que se confirmem as “evidencias indiretas” de que a desova ocorra na fase inicial da enchente, modifica-se a distribuição espacial dos 3 conjuntos, já que nos meses de seca diminuirá a velocidade da água com os reservatórios instalados. Isso significa que durante os meses de seca, na área anterior aos reservatórios haverá A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. uma maior concentração de ovos, larvas e alevinos, fator que favorecerá uma maior predação e uma diminuição gradativa de exemplares por espécie e o conseqüente empobrecimento da cadeia reprodutiva. Um dos especialistas contratados para atender às complementações solicitadas pelo IBAMA, Jansen Zuanon, é obrigado a reconhecer (folha 1635) que : “Novamente, não há informações disponíveis sobre valores críticos de velocidade da água para a deriva efetiva de larvas dessa espécie(dourada)”. O parecer de outro especialista na mesma nota conjunta, Angelo Agostinho, admite que “não há, entretanto, estudos similares para reservatórios menores ou com águas mais túrbidas e velozes(baixo tempo de residência), como é o caso dos dois projetados para o rio Madeira. Embora possa apresentar resultados distintos, o fato dois peixes migradores e suas fases iniciais terem que transpor dois reservatórios a jusante confere um grande grau de incerteza em qualquer prognóstico sobre o tema.” Um STP como o anunciado nunca foi testado em rio amazônico e para espécies amazônicas. Citando Jansen Zuanon: “mesmo considerando o ineditismo do tipo de mecanismo de transposição proposto, acredito que há boas chances de que douradas e outros peixes que normalmente vencem as corredeiras do rio Madeira, continuem a faze-lo através de um canal com essas características.” Eis o que embasa o último parecer “conclusivo” sobre peixes: a crença nas “boas chances” desse canal inédito dar certo. Evidencia-se pelos estudos (e suas complementações reiterativas) apresentados que o Projeto em si mesmo é uma grande incógnita. As incertezas estruturais do projeto só poderão ser sanadas durante a instalação e operação das Usinas. Jansen. Zuanon, considera ser “de praxe” a dimensão temporal reduzida dos estudos incluídos no EIA do Madeira, como se o maior afluente do Amazonas e com a maior variação de espécies de peixes já registrada em todo mundo, não merecesse algo mais que o “de praxe”. Segundo ele, como se trata de “um empreendimento sem similar na Amazônia Brasileira, é normal que os prognósticos ambientais contenham uma boa dose de incerteza, o que é explicitado no relatório técnico.” A incerteza só pode ser “normal” em um projeto experimental. Mas para o pesquisador não há o que fazer senão absorver as lacunas de informação do Projeto: “Desafortunadamente, tal situação de desconhecimento se aplica à quase todos os rios da Amazônia brasileira, em função da carência de recursos e de pesquisadores para realizar esses estudos.Para resolver essa situação no Rio Madeira(e nos demais rios amazônicos) seria necessário um longo período de tempo (10 anos ou mais), além de uma considerável soma de recursos financeiros e o envolvimento de grandes equipes de pesquisadores(dezenas e centenas de profissionais e estudantes). Assim na falta de um programa de pesquisas de longo prazo instalado na região, nâo há como esperar que tais dificuldade sejam solucionadas em um curto A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. A ausência de conhecimento relevante acumulado sobre peixes e demais formas de vida no rio Madeira, e doravante qualquer rio, não pode inviabilizar o cronograma dos investidores privados, pois “não há como esperar”. É o princípio da precaução aplicado ao contrário: o futuro que devemos zelar é o futuro precificado com retorno financeiro. 4.3 Contaminação por mercúrio
É preciso dimensionar precisamente os riscos de metilação do mercúrio (MeHg) que é a forma orgânica mais comum do mercúrio, e que se bioacumula (nos tecidos gordurosos) e se biomagnifica nas cadeias alimentares, daí contaminando os seres humanos. A informação técnica nº 20/2007 do IBAMA solicita do Consórcio Furnas- Odebrecht o aprofundamento dos “prognósticos sobre o processo de metilação e os impactos que este metal solubilizado pode causar à biota aquática e à saúde pública.” A maior parte do mercúrio nos ecossistemas é associado aos solos e dessa matriz libera-se para a atmosfera e para os sistema fluvial. Some-se a isso os rejeitos da atividade garimpeira, muito intensa na bacia do Madeira nos anos 70 e 80, com forte incidência até hoje nas cabeceiras e afluentes na Bolívia e no Peru. O próprio EIA reconhece a presença amplificada de mercúrio na bacia do Madeira. Aliás, a concentração de mercúrio nos peixes da região já se encontra acima dos padrões considerados aceitáveis, especialmente nas espécies piscívoras(que se alimentam de outros peixes). Porções inativas de mercúrio metálico podem ser remobilizadas por atividades que revolvam solos, como por exemplo: mineração e dragagem da calha na estiagem ou remoção de rochas e sedimentos para a eventual construção de barragens. O EIA relaciona a ressuspensão dos elementos metálicos presentes nos sedimentos de fundo somente a atividades voltadas para a construção do eixo de barramento, declarando que estas seriam transitórias e localizadas. A informação técnica 020/2007 avalia, contudo, “que o risco de ressuspensão e remobilização do mercúrio não foi abordado de forma satisfatória pelo EIA-RIMA, tendo sido necessária a solicitação de complementação de onde foram extraídas as observações apresentadas a seguir.” (grifo nosso) -“Na fase de movimentação de terras, perfurações e extrações do material rochoso e cachoeiras do Jirau e Santo Antonio para a construção das barragens haverá risco de mobilização de Hg.” -“Durante e após a fase de enchimento do reservatório, ocorreriam mudanças físicas e químicas na água dos tributários do rio Madeira podendo promover o aumento da metilação do Hg, principalmente pela decomposição de matéria orgânica. De acordo, com a modelagem, em alguns casos, como nos bolsões a jusante de Teotônio, as águas do Rio Madeira invadirão os igarapés, fenômeno conhecido na região como ‘repiquete’, que acontece em situações de elevação brusca do nível do canal, levando a alterações na química da água podendo influenciar o processo de metilação que já vem ocorrendo nesses ambientes” A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. -“No Igarapé Jatuarana que apresenta baixa vazão, assim como outros braços menores, ocorreria inversão de fluxo durante o enchimento, promovendo a anoxia(perda de oxigênio). Esta preocupação está fundamentada nas condições ideais para a metilação, ou seja: anoxia, acúmulo de matéria orgânica, aumento de atividade microbiológica, elevação da temperatura e diminuição do PH da água, além da proliferação de macrófitas(plantas aquáticas).Portanto neste ambiente, e em outros que compartilham destas características haverá risco de mobilização de mercúrio.” Corrobora o diagnóstico de insuficiência de estudos sobre mercúrio, o parecer de Bruce Forsberg e Alexandre Kamenes: “Os autores do EIA não apresentaram dados para mercúrio em água, um parâmetro chave na avaliação dos impactos de represamento. Coletaram amostras para este fim mas não conseguiram detectar mercúrio com o método utilizado cujo limite de detecção foi citado em 30ng (nanogramas)/litro. Culparam o método de preservação, mostrando assim um completo desconhecimento tanto da dinâmica natural do mercúrio quanto da metodologia adequada para analisa-lo. Os níveis de mercúrio total em águas naturais normalmente variam entre 1 e 10 ng/l, concentrações muito menores do que o limite de detecção do método usado” Os dois pesquisadores contratados pelo MP-RO ainda consideraram equivocada a escolha de espécies de peixes para fins de pesquisa de biomagnificação de mercúrio: “As espécies escolhidas eram na maioria migratórias. Portanto seus níveis de mercúrio não refletem somente as condições ambientais locais, mas todas as condições encontradas ao longo da rota de migração de cada espécie. (.) Para avaliar impactos ambientais numa região específica é essencial escolher bio-indicadores que representem bem as variações ambientais locais.” Mais, a modelagem sedimentológica adotada no EIA utilizou abordagem unidimensional (1D), quando muito, bidimensional(2d), de forma que a troca de volume d’água entre a calha do rio e a planície inundável ou fica incógnita ou sub-representada Por esse motivo Forsberg e Kamenes consideram que os resultados advindos dessa modelagem não são consistentes. Para eles uma “modelagem sedimentológica adequada indicaria a distribuição (3D-tridimensional) e dinâmica de sedimentos, a evolução da batimetria(medição da profundidade) e a provável distribuição de bancos de macrófitas e outra vegetação aquática no reservatório após represamento.” No dia 5 de junho de 2007 o Ministério do Meio Ambiente realizou reunião para responder a tais indagações. Presentes diretores e especialistas do IBAMA, do Instituto Evandro Chagas, do Ministérios da Saúde e do Consórcio Furnas/Odebrecht. Em memorando preliminar à emissão da Licença Prévia, Roberto Messias Franco, o atual diretor de licenciamento ambiental, relata a memória dessa reunião: “depreendeu-se que os questionamentos e riscos sobre o mercúrio abordados não se caracterizam como fatores de inviabilidade do empreendimento proposto, porém suscitam necessidades (sic) de se estabelecer ações de monitoramento e das (sic) medidas de controle.” Para Elisabeth Santos do Instituto Evandro Chagas, os impactos das hidroelétricas em relação ao mercúrio são passíveis de serem A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. monitorados e mitigados, “não se constituindo num fator de dimensões inadministráveis” As relativizações apontadas denotam a intenção de nivelar por baixo os riscos, método de tabula rasa de quem quer se eximir das conseqüências e das responsabilidades sobre elas. Ao convalidar metodologias utilizadas no EIA-RIMA que disfarçam os riscos reais de contaminação por mercúrio atentam contra administração ambiental, sonegam dados técnico-científicos em procedimentos de licenciamento e praticam crime ambiental, segundo a lei 9605/98, lei que os setores privatistas, não por acaso, querem derrubar. 5. O rio Madeira e sua antítese

Os estudos ambientais elaborados pelo Consórcio Furnas/Odebrecht, em seu próprio
interesse, escondem as reais consequências dos dois barramentos propostos para o maior afluente do Rio Amazonas. Em primeiro lugar, trata-se da desestruturação de inúmeras comunidades ribeirinhas, camponesas e indígenas, brasileiras e bolivianas, com a expulsão direta de mais de 5 mil famílias de seus espaços de moradia, trabalho e identidade. É o “preço do desenvolvimento” diz o senso comum a recobrir o senso muito particular dos conglomerados aos quais o “desenvolvimento” sempre serve. Aquilo que é visto apenas como eixo viário e jazida energética, é uma bacia complexa que guarda incalculável diversidade sociocultural. Diversidade andino-amazônica em uma bacia sedimentar, em formação a olhos vistos, viva em todos os sentidos. Os propositores do projeto disfarçam e tentar fazer crer que os “impactos” serão localizados, passíveis de monitoramento e mitigação. A retenção das águas de um rio com tamanha vazão de água e de partículas sólidas para aproveitamento energético modifica todo o regime hidrológico, e os perfis biótico e sócio-econômico O Rio Madeira, além de ser o maior afluente do rio Amazonas, é sua principal fonte de sedimentos. Sua grande concentração de partículas sólidas em suspensão é resultado da intensa erosão que se verifica na descida dos Andes. Esses sedimentos cumprem um papel crucial na vitalização e fertilização de toda a bacia amazônica. O rio Madeira está, portanto, em constante formação. Seu alto e médio curso é composto por dezenas de corredeiras, tombos e cachoeiras que sustentam um regime hidrológico complexo e delicado. A alteração da dinâmica do rio e da bacia com a construção de barragens pode acarretar níveis imprevisíveis de assoreamento e de alagamento acima das represas (ou seja, a montante) e de erosão após as represas (ou seja, a jusante). O comprometimento dos ecossistemas e da biodiversidade regional, especialmente a relativa aos peixes, ameaça a atividade pesqueira em toda a bacia do Madeira, que é fonte de renda de mais de 20 mil famílias. A dinâmica migratória das principais espécies de peixes Madeira acima (para procriação) e Madeira abaixo (na descida de ovos e alevinos) será afetada gravemente, mesmo com o sistema de transposição de A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. peixes que for criado, mesmo com a abertura periódica dos vertedouros que for programada nas estações cheias. O alagamento permanente dos igarapés e tributários do alto e médio Madeira levará a uma multiplicação dos vetores de malária e dos fatores contaminantes por mercúrio. E isso sem que se antecipem medidas preventivas e de aparelhamento dos órgãos públicos responsáveis pelo seu controle na região. Uma ainda mais desordenada expansão urbana e demográfica na região no entorno das construções já está ocorrendo sem a garantia de uma correspondente ampliação da oferta de serviços públicos. O município de Porto Velho será convertido transitoriamente em “canteiro de obras”, o que lhe custará cicatrizes permanentes. Enquanto servir ao Projeto, a cidade será um apêndice das usinas, servindo como base física das obras, e como estoque de mão-de-obra barata no pico das construções. Não existem instrumentos para o enraizamento dos investimentos na região e o surto de crescimento previsto servirá apenas para gerar recessão e desemprego em escala ampliada depois de 2012 com o término das obras. A construção das Usinas é o primeiro passo para a instalação de um corredor inter- oceânico no rio Madeira e bastou seu anúncio para que se acelerassem os ciclos de destruição e a incorporação de florestas e mananciais, incluindo unidades de conservação, reservas extrativistas e terras indígenas, pela pecuária, pela mineração e pelas monoculturas de exportação. Este megaprojeto serve antes de tudo para sinalizar uma porta aberta para investimentos estrangeiros diretos interessados em grandes projetos de infra-estrutura com grande poder de remodelação territorial. A diluição das exigências sociais, ambientais, institucionais e econômicas seria uma prova da “abertura” e da “boa vontade” do país com os capitais. A perda das proteções da população diante dos grandes projetos de infra-estrutura tornou-se condição prévia para que os mesmos sejam viabilizados do ponto de vista financeiro. É o risco de vida da população do Madeira pagando o risco dos investidores do Projeto do Complexo Madeira. Na verdade a aprovação do Projeto das Usinas no Rio Madeira representa um precedente para o “aproveitamento total” do potencial hidroelétrico da Amazônia. Em nome da justificativa alegada é preciso que se avalie a própria necessidade de expansão da geração elétrica do país. Que tipo de expansão e para quem? No caso do Brasil, os setores exportadores de commodities é que demandam mais energia para ampliar sua escala de produção e de escoamento de matérias-primas para o mercado externo. É mais energia para aprofundar a reprimarização da economia brasileira ou mais energia para a dinamização do mercado interno com distribuição de renda e inovação? Existem saídas de curto prazo de menor impacto à disposição, como a repotenciação das usinas mais antigas e a aplicação de programas de eficiência energética, que ofertariam um adicional equivalente ao que produziria o Madeira, com um custo A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. muito menor. A energia do Madeira é cara até mesmo do ponto de vista estritamente operacional, pois ela precisaria ser deslocada por milhares de quilômetros até chegar aos principais centros de consumo. Decididamente, não é o fornecimento energético que justifica a prioridade que essas usinas estão recebendo por parte do Governo e do setor privado. O uso oportunista do “apagão” tenta esconder um conjunto de omissões, incompetências e interesses obscuros em torno desse licenciamento. O discurso oficial, também público-privado, alega que o aumento da potência instalada do país pela via hidroelétrica, e pelo Madeira em especial, é a alternativa mais barata e mais limpa à disposição. É mais barato produzir energia em grande escala na Amazônia para depois construir e manter dispendiosas linhas de transmissão com de mais de 2.500 km de extensão? Pode ser considerada limpa uma energia que compromete o fluxo do rio, a qualidade da água, a cadeia alimentar dos peixes, que favorece a proliferação da malária e a contaminação por mercúrio, que produz o deslocamento de milhares de pessoas, que desfecha um golpe fatal sobre as culturas tradicionais e que chega inclusive a desorganizar as cidades próximas? A democratização do acesso a energia no Brasil não pode ficar a reboque da expansão de cinturões primário-exportadores. Se não problematizarmos o perfil da demanda e o modelo de desenvolvimento vigente no país, estaremos sempre à beira de um próximo apagão, e dispostos a sacrificar novamente o que for necessário. Mas necessário para quem? A alternativa que não se permite conceber é a adoção de um planejamento público do setor energético nacional voltado a um outro padrão de desenvolvimento, com múltiplas pequenas escalas até agora desconsideradas. 6. Não passarão sobre o povo do Madeira!
O aproveitamento hidroelétrico de uma bacia internacional como a do Madeira de maneira alguma poderia ter sido autorizado sem a consulta e envolvimento da Bolívia e do Peru em estudos conjuntos. Ainda que as usinas se localizem na porção brasileira do rio Madeira, seus impactos são transfronteiriços, especialmente a de Jirau situada apenas a 80 km da fronteira da Bolívia. Não pode haver impacto ou efeito isolado ou estático em apenas um determinado trecho da Bacia Não há impacto pontual que não se estenda, direta ou cumulativamente, ao conjunto da Bacia, ainda mais em se tratando de dois barramentos no seu Rio eixo. Os peixes migradores não subirão para desova na mesma quantidade o que implicará em uma profunda modificação do perfil da pesca na região das cabeceiras do Madeira. Afluentes como o rio Abunã sofrerá redução de sua vazão especialmente no período das cheias, o que pode produzir alagamentos imprevistos ao longo de suas margens, em território boliviano. A Procuradoria Geral do IBAMA exigiu em sua última manifestação “aprofundamento dos estudos ambientais” frente a possibilidade de afetação indireta da Bolívia pelos empreendimentos, e que se nesse aprofundamento “vier a ser identificada a real possibilidade de afetação do país vizinho, é indispensável que pela via Diplomática Brasileira, se busque a negociação e participação do Governo vizinho, na implantação do empreendimento, a fim de evitar ofensa aos princípios de independência nacional, A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. autodeterminação dos povos, não intervenção e relações multilaterais , conforme regras que repousam sobre o disposto no art. 4º da Constituição Federal.” Os estudos não foram aprofundados no que toca à dinâmica hidrosedimentológica dos tributários do Rio Madeira e de suas cabeceiras na Bolívia e no Peru. Tampouco se consolidou um diálogo binacional a respeito, reduzindo-se esse a um repasse parcial de informações reiterativas, da ausência de impactos transfronteiriços, por parte do Governo brasileiro. Cumpre notar que o Parecer 014/2007 afirma que “a dinâmica sedimentológica será modificada e agravada: o nível do rio madeira ficará acima do nível em condições naturais para qualquer vazão menor que 48.800 m³/s (.). ressalta-se que essa variação de níveis deverá ser maior devido ao efeito do assoreamento que sofrerá o rio Madeira com a implantação do reservatório.(.) tal tema deveria ter sido melhor esclarecido e devidamente incorporado no EIA, em oposição a simplesmente afirmar que a AHE de jirau não trará impactos para o território boliviano. conseqüentemente, áreas impactadas do território nacional e transfronteiriço não foram devidamente incorporadas e diagnosticadas no eia.” (grifo nosso) O Governo brasileiro encaminhou tardiamente, em novembro de 2007, respostas técnicas às dúvidas e questionamentos levantados pelo Governo boliviano. O Governo brasileiro apresentou como garantia de manutenção dos atuais níveis d’água, no alto Madeira, especificamente o fluxo hidráulico na foz do Abunã, a Resolução nº 555/2006 da ANA. Essa regra seria observada “quando da elaboração do projeto básico do empreendimento e quando da sua operação, por meio de avaliações anuais da curva-guia”. Garantia discursiva não é o problema “Não haverá inundação em território boliviano em decorrência da construção das AHEs de Jirau e Santo Antônio.” As previsões da legislação brasileira e as normativas definidas pela ANA até agora não tem respaldo prático, sequer para as comunidades ribeirinhas e indígenas brasileiras diretamente ameaçadas. São garantias ainda mais vazias para a população boliviana. È preciso que haja detalhamento da operacionalização desses requisitos, metas e cronograma para sua implementação. No caso boliviano, nenhuma dessas promessas tem validade sem a acordo bilateral prévio, sem estudos binacionais certificados, sem a criação de mecanismos de solução de controvérsias, sem um órgão executor conjunto. Seria preciso estender as normativas, as fiscalizações e as sanções previstas na resolução da ANA, que tem jurisdição somente nacional, a marcos binacionais. Pode-se notar na resposta dada pelo Governo brasileiro que o mesmo posterga a apresentação dos modos de operacionalização, acenando tão somente com a promessa de que o fará durante a instalação das usinas. Contra essa política do fato consumado, levantou-se o movimento social nos três países que compõem a bacia. Desde fevereiro de 2007, movimentos integrantes da Via Campesina no Brasil e Bolívia, representantes de movimentos camponeses e mineiros do Peru, comunidades ribeirinhas e camponesas ameaçadas pelo projeto do Complexo do Madeira e redes e organizações convidadas vêm construindo uma articulação regional chamada MOVIMENTO SOCIAL EM DEFESA DA BACIA DO RIO A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. MADEIRA E DA REGIÃO AMAZÔNICA (MSDBRM). Os encontros internacionais do movimento (Cobija, Porto Velho, Guajará-Mirim e Riberalta) serviram para planejar medidas de autodefesa e de auto-organização do território comum do Madeira. Está sendo construída uma agenda conjunta envolvendo formação, lutas e difusão de informações em que se tracem estratégias comuns de resistência à construção de um complexo hidroelétrico e hidroviário no Rio Madeira. O MSDBRM denuncia em seus documentos o intento de governos nacionais e subnacionais, do setor privado e de organizações internacionais de estabelecerem conjuntamente um “território empresarial” na Amazônia, uma espécie de Estado paralelo e auto-regulado, com soberania privada, à margem das leis nacionais. Na opinião dos movimentos componentes, os estudos apresentados por Furnas/Odebrecht procuraram mascarar os inevitáveis danos e conseqüências para a população e o meio ambiente. Eles alertam que, com a redução da velocidade da água, serão criadas condições favoráveis ao incremento da malária, à contaminação por mercúrio, saturando os já precários serviços de saúde e saneamento. Representantes de comunidades ribeirinhas brasileiras e bolivianas, que têm na pesca sua principal fonte de renda, denunciam o descaso dos empreendedores com relação ao comprometimento dos ciclos reprodutivos e migratórios das espécies de peixe de grande importância para sua cultura e subsistência. A inviabilização da pesca, somada à perda das áreas de cultivo, das matas e das áreas com grande potencial ecoturístico, expulsaria milhares dessas famílias para a periferia das cidades, nas quais ficarão sujeitas ao subemprego, à criminalidade e à prostituição. Na Bolívia destaca-se a mobilização das comunidades camponesas dos departamentos de Beni e Pando, com apoio do FOBOMADE (Foro Boliviano de Medio Ambiente e Desarrollo), no sentido de que o governo Evo Morales continue recusando qualquer acordo com o governo brasileiro que comprometa a soberania do país e a segurança da população boliviana. As organizações bolivianas se comprometeram a acompanhar as negociações do Grupo de Trabalho binacional criado para avaliar os impactos transfronteiriços do Projeto, para cobrar transparência, rigor das análises e participação das comunidades ameaçadas no processo. Em Rondônia, houve indicação para se intensificar o processo de organização independente das comunidades ribeirinhas, com apoio do Movimento dos Atingidos por Barragens-MAB e seus aliados, para se contrapor à cooptação de associações e lideranças comunitárias por Furnas e por projetos paralelos do governo Federal. Os movimentos da Bacia do Madeira exigem autodeterminação das populações tradicionais, consagrado na convenção 169 da OIT, regulamentado no Brasil pelo decreto 6.040/2007. Um território que define a identidade de populações e comunidades não pode ser reformulado sem o
consentimento e participação destas.
7. O leilão do que não tem preço

O acordo de exclusividade entre Furnas e Odebrecht e desta última com os
fornecedores internacionais das turbinas de tipo bulbo com melhor certificação,
representou prática restritiva de concorrência e uma fraude anunciada do próprio
A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. leilão, reproduzindo os mesmos vícios verificados no processo de licenciamento: parcialidade, favoritismo e abuso do poder econômico. Tendo Furnas como anteparo, possuidora das informações e do "capital social" do projeto, e a Odebrecht e Andrade Gutierrez como alavancas, em permanente simbiose com o Estado, o capital internacional é que, no médio prazo, se apossa do projeto, envolvendo grandes fornecedoras a Alston e a Siemens e antenas dos mercados financeiros internacionais como o Banif e o Santander. O valor da energia que será comercializada no mercado cativo: R$ 78,87. Um preço cabeça e rabo, capicua, palíndro em forma numérica. A jogada decisiva no dominó. O segredo do enigma de um deságio tão grande, para além da composição “interna” de preços entre o consórcio/oligopólio formado, está na livre negociação dos 30% da energia de Santo Antonio destinados aos consumidores livres como a Vale, entre outros grupos econômicos. Some-se a essa liberalidade outra adicional: o sinal verde dado ao Consórcio vencedor para antecipar a operação da usina antes de dezembro de 2012, podendo vender sua enrgia, até esse prazo, no mercado livre. As 33 condicionantes requeridas para se obter a licença de instalação, que antecede a licença de operação, pelo visto, e pelo que foi ofertado, também foram rifadas. Fica demonstrado com esse leilão, como faz questão de dizer Flávio Neiva da Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica, que a parceria entre os setores público e privado é plenamente viável. Claro, desde que o erário, as populações locais e o meio ambiente paguem a conta. Desde que o Estado entre com facilidades regulatórias, logísticas e financeiras e que depois os conglomerados privados não se esqueçam disso antes das eleições. Esse leilão de fato mostra como se viabiliza uma ppp (parceria público-privada): adestre as estatais do setor elétrico, encaixote o IBAMA e o MMA, terceirize o BNDES e os investimentos e os agradecimentos não faltarão. O mesmo Flávio Neiva disse ainda que o certame é uma prova da viabilidade dos empreendimentos hidrelétricos e da exploração do potencial amazônico. "Hoje temos tecnologias capazes de construir projetos adequados à região". Mas como sabem que são projetos adequados sem estudos igualmente adequados, sem que haja outro empreendimento similar no planeta? Nunca se testou antes usinas com dezenas de turbinas bulbo em um rio em formação, com baixas quedas, caudaloso, com enorme vazão hídrica e de sedimentos. O licenciamento do Complexo Madeira é a permissão para um experimento frankensteiniano para que se produzam criaturas similares em série na Amazônia. São os votos de Maurício Tolmasquim da EPE, Empresa de Pesquisa Energética, com esse leilão: "que ele abra as portas para que outras usinas sejam aprovadas de forma rápida". Arrombada a porta da Amazônia, que passe rápido a boiada, o agronegócio, o setor eletrointensivo, as estradas e as hidroelétricas. Fronteiras agrícola e mineral puxadas pela fronteira elétrica. Terra, subsolo, água, energia e aparatos (des) regulatórios para multiplicar plataformas de exportação. A nação não passa de um pretexto descartável. Mario Menel, presidente da Abiape (Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia Elétrica), ao ser A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. inquirido sobre como a Usina de Santo Antonio ajudaria a indústria “nacional”, respondeu: “nós lidamos basicamente com produtos de exportação tais como minério de ferro, como aço, com commodities internacionais. E para isso a energia elétrica tem que ser competitiva, tem que ser barata, porque se não for assim nós perdemos o nosso grau de competição no mercado internacional, tendo em vista que nós exportamos a maioria dos nossos produtos”. Menel fala em nome dos 9 associados da ABIAPE, que representam juntos 30% do PIB industrial do país: Votorantim Energia, Companhia Vale do Rio Doce, Alcoa Alumínio, Valesul Alumínio, Belgo – Arcelor Brasil, Companhia Siderúrgica Nacional, Camargo Corrêa Energia, Samarco Mineração, Gerdau Açominas. Para eles, hidroelétricas como a de Santo Antônio significam subsídio para aumentar a escala de suas exportações. Energia para produzir e escoar matérias-primas e semi-manufaturados que tornam mais “eficientes” as cadeias de suprimentos das transnacionais. Menel nos faz o favor de ser explícito: “uma usina desse porte, que é hídrica, ela representa uma oportunidade para que esses grupos, nesse momento, fixem os seus custos de produção, porque como investidores nós não estaremos sujeitos às variações de tarifas ao longo do tempo. Se for obtida uma concessão e nós conseguirmos nos incorporar num consórcio vencedor nós teremos a nossa energia fixada ao longo do tempo. Trataria então de um custo significativo e sob o nosso inteiro controle. Essa é a importância dessa usina para nós”. Querem fazer do Madeira uma plataforma de extração e exportação de energia, um território remodelado e suspenso no ar. “Energia barata” composta com danos incalculáveis e irreversíveis para os povos da Amazônia e para o ambiente global. “Energia limpa” para a produção suja e perdulária das transnacionais. O leilão da primeira usina no Rio Madeira emite uma senha para o “aproveitamento total” do potencial hidroelétrico da Amazônia. A tragédia dos comuns, daqueles que têm o rio em comum. Avançam os cercamentos que transformam água em mercadoria. Nessa enorme monocultura de energia, não há lugar para vida, memória, povo e nação. Desses latifúndios hídricos que começam a ser encravados na Amazônia, seremos todos excluídos. Seremos todos atingidos. Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, professor da Universidade Federal de Rondônia e membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e da Rebrip-Rede Brasileira pela Integração dos Povos. A Amazônia Ocidental e os grandes projetos de infra-estrutura: Novo planejamento territorial à vista. Referências
- El Norte Amazónico de Bolívia y el Complejo del río Madera, CGIAB/FOBOMADE, março de
- Informações Técnicas, nº 17,19 e 20/2007 COHID/CGENE/DILC/IBAMA, 3 de maio de 2007, - Nota Técnica “Sedimentos, Modelos e Níveis d’água”, José G. Tundisi, Newton O. Carvalho, e Sultan Alam, protocolada no IBAMA em 25 de abril de 2007. IBAMA/DILIC, Brasília. - Nota Técnica “Ictiofauna: comentários gerais”, Jansen A.S. Zuanon, protocolada no IBAMA em 25 de abril de 2007. IBAMA/DILIQ, Brasília. - “Parecer sobre o mecanismo de transposição previsto para os reservatórios de santo Antonio e Jirau”Ângelo Antonio Agostinho, protocolada no IBAMA em 25 de abril de 2007. IBAMA/DILIC, Brasília. - Parecer Técnico nº 14/2007 COHID/CGENE/DILC/IBAMA, 21 de março de 2007, Brasília. - Parecer da Procuradoria Geral do IBAMA/PROGE(nº0280/2007), DILIC/IBAMA 30/05/2007 - Memorando 379/2007, DILIQ/IBAMA, Roberto Messias Franco, 04/07/2007, Brasília. - Relatório de situação/ GE-PPI, Grupo Executivo do Plano Piloto de Investimentos, outubro de - Respostas do Governo brasileiro à “Solicitud de información al gobierno brasilero sobre los empreendimientos hidroelectricos de Jirau y Santo Antonio –novembro de 2007, documento oficial do Gobernó Boliviano, La Paz, Bolívia. - EIA/RIMA e demais documentos públicos do licenciamento das usinas no rio Madeira na disponíveis na página do IBAMA: http://www.ibama.gov.br/licenciamento (sequencia: consulta, empreendimentos, Rondônia, Porto Velho, Santo Antonio, documentos do processo).

Source: http://www.fobomade.org.bo/rio_madera/doc/analisis/Amazonia_Ocidental.pdf

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